Amalia Bautista – Nu de Mulher

Para ti nunca passei de um bloco
de mármore. Esculpiste nele o meu corpo,
um corpo de mulher branco e formoso,
em que não viste nada a não ser pedra
e o orgulho, isso sim, do teu trabalho.
Nunca imaginaste que eu te amava
e que tremia quando, docemente,
me modelavas os seios e os ombros,
ou alisavas as coxas e o ventre.
Hoje, estou num jardim, onde suporto
os rigores do frio pelo Inverno,
e no Verão aqueço de tal modo
que nem sequer os pardalitos vêm
pousar nas minhas mãos pois estas queimam.
Mas, de tudo isto, o que mais me dói
é baixar a cabeça e ver a placa:
”Nu de mulher”, como há tantas outras.
Nem te lembraste de me dar um nome.

Trad.: Inês Dias

Luz del medio día

Amalia Bautista – Desnudo de Mujer

Para ti nunca fui más que un pedazo
de mármol. Esculpiste en él mi cuerpo,
un cuerpo de mujer blanco y hermoso,
en el que nunca viste más que piedra
y el orgullo, eso sí, de tu trabajo.
Jamás imaginaste que te amaba
y que me estremecía cuando, dulce,
moldeabas mis senos y mis hombros,
o alisabas mis muslos y mi vientre.
Hoy estoy en un parque, donde sufro
los rigores del frío en el invierno,
y en verano me abraso de tal modo
que ni siquiera los gorriones vienen
a posarse en mis manos porque queman.
Pero, de todo, lo que más me duele
es bajar la cabeza y ver la placa:
«Desnudo de mujer», como otras muchas.
Ni de ponerme un nombre te acordaste.

Inês Dias – (Primeira Memória)

No ano da morte da última
beguina, que nunca precisara do
desassossego de ver,
chegou finalmente à Terra
a primeira luz do mundo.

380 mil anos até comprovarmos,
como a História nunca se cansara,
aliás, de repetir, que tudo
é trevas, instável equilíbrio
entre matéria e energia escuras.

Em suma,
a humanidade devolvida
num saco negro,
com alguns buracos
para os ossos respirarem.

John Mateer – s/ título

Este poema vai ser escrito com um livro de fotografias
em mente, comemorando esse retrato da jovem
estudante de história de arte que se tornaria a mulher
do fotógrafo, a mãe do seu filho, ela que se atiraria
de uma janela do apartamento deles, e que, por
ter existido, proliferaria,
como tudo o que pode ser pronunciado pelo Não-Dito.

Trad.: Inês Dias

in: https://www.facebook.com/oennui/photos/a.286037448227019/1060660157431407/?type=3&theater

Antonia Pozzi – Desalento

Tristeza destas minhas mãos
demasiado pesadas
para não abrirem feridas,
demasiado leves
para deixarem marca –

tristeza desta minha boca
que diz as mesmas
palavras que tu
– significando outras coisas –
e esta é a expressão
da mais desesperada
distância.

Trad.: Inês Dias

Sfiducia

Tristezza di queste mie mani
troppo pesanti
per non aprire piaghe,
troppo leggere
per lasciare un’impronta –

tristezza di questa mia bocca
che dice le stesse
parole tue
– altre cose intendendo –
e questo è il modo
della più disperata
lontananza.

Antonia Pozzi – Canto da Minha Nudez

Olha para mim: estou nua. Da inquieta
languidez da minha cabeleira
até à tensão fina do meu pé,
sou toda de uma magreza amarga
envolta numa cor de marfim.
Olha: como é pálida a minha carne.
Dir-se-ia que o sangue não a percorre.
O vermelho não transparece. Apenas uma lânguida
pulsação azul se esbate no meio do peito.
Vê como tenho o ventre côncavo. Incerta
é a curva das ancas, mas os joelhos
e os tornozelos e todas as articulações
são escanzelados e duros como os de um puro-sangue.
Hoje, deito-me nua, na limpidez
da banheira branca e deitar-me-ei nua
amanhã sobre um leito, se alguém
me quiser. E um dia nua, só,
estendida de costas sob demasiada terra,
hei-de estar, quando a morte me tiver chamado.

Trad.: Inês Dias

Canto della mia nudità

Guardami: sono nuda. Dall’inquieto
Languore della mia capigliatura
Alla tensione snella del mio piede,
io sono tutta una magrezza acerba
inguainata in un color avorio.
Guarda: pallida è la carne mia.
Si direbbe che il sangue non vi scorra.
Rosso non ne traspare. Solo un languido
Palpito azzurrino sfuma in mezzo al petto.
Vedi come incavato ho il ventre. Incerta
È la curva dei fianchi, ma i ginocchi
E le caviglie e tutte le giunture,
ho scarne e salde come un puro sangue.
Oggi, m’inarco nuda, nel nitore
Del bagno bianco e m’inarcherò nuda
domani sopra un letto, se qualcuno
mi prenderà. E un giorno nuda, sola,
stesa supina sotto troppa terra,
starò, quando la morte avrà chiamato.

Amalia Bautista – Contra ‘Remedia Amoris’

Não sou desse género de mulheres
incapazes de amor e de ternura.
Odeio o sacrifício e repugna-me
a vaidade que nasce da violência,
mas sei o que é valor e o que é sangue.
Quero ser a mulher de um mercenário,
de um poeta ou mártir, vai dar ao mesmo.
Porque sei olhar nos olhos dos homens.
Conheço quem merece a minha ternura.

Trad.: Inês Dias

Luz del medio día

Contra ‘Remedia Amoris’

Yo no soy de ese tipo de mujeres
incapaces de amor y de ternura.
Yo sé lo que es valor y lo que es sangre,
aunque odie el sacrificio y me repugne
la vanidad que nace en la violencia.
Quiero ser la mujer de un mercenario,
de un poeta o de un mártir, es lo mismo.
Yo sé mirar los ojos de los hombres.
Conozco a quien merece mi ternura.

Amalia Bautista – Nada Sabemos

Nunca saberemos se os enganados
são os sentidos ou os sentimentos,
se viaja o comboio ou a nossa ânsia,
se as cidades mudam de lugar
ou se todas as casas são a mesma.
Nunca saberemos se quem nos espera
é quem deve esperar-nos, nem sequer
quem temos de esperar no meio de uma
plataforma fria. Nada sabemos.
Avançamos às cegas, perguntando
se isto que se parece com a alegria
é apenas o sinal inequívoco
de que nos enganamos novamente.

Trad.: Inês Dias

Luz del medio día

Nada Sabemos

Nunca sabremos si los engañados
son los sentidos o los sentimientos,
si viaja el tren o viajan nuestras ganas,
si las ciudades cambian de lugar
o si todas las casas son la misma.
Nunca sabremos si quién nos espera
es quién debe esperarnos, ni tampoco
a quién tenemos que aguardar en medio
de un frío andén. Nada sabemos.
Avanzamos a tientas y dudamos
si esto que se parece a la alegría
es la señal definitiva
de que hemos vuelto a equivocarnos.

Amalia Bautista – Os Teus Olhos

Quando já se esgotaram os caminhos
que a razão poderia aconselhar-nos
abrem-se os teus olhos: com eles tudo
volta a inundar-se da luz escura
que dá sentido ao mundo e à minha vida.

Trad.: Inês Dias

Tus Ojos

Cuando se han agotado los caminos
que la razón podría aconsejarnos
se abren tus ojos, y con ellos todo
vuelve a inundarse de la luz oscura
que da sentido al mundo y a mi vida.

Antonia Pozzi – Grito

Não ter um Deus
não ter um túmulo
não ter nada de certo
mas apenas coisas vivas que nos fogem –
existir sem ontem
existir sem amanhã
e cegar no vazio
– socorro –
pelo sofrimento
que não tem fim –

10 de fevereiro de 1932

Trad.: Inês Dias

Grido

Non avere un Dio
non avere una tomba
non avere nulla di fermo
ma solo cose vive che sfuggono –
essere senza ieri
essere senza domani
ed acciecarsi nel nulla –
– aiuto –
per la miseria
che non ha fine –

10 febbraio 1932

Inês Dias – Linhas de Torres

“But they never stood in the dark with you,
        love (…)”

O passado é um país estrangeiro,
só não sabíamos que o tinham ocupado
nalgum inverno ausente,
para nos exilarem da ternura
entretanto roída por um exército de traças.
.
Cruzando a fronteira,
a solidão tornou-se uma sala
de espera povoada por mais
calafrios além do nosso,
mas já não restam palavras
a essas conversas de fantasmas
entrincheiradas que ainda
temem a via-sacra da noite,
o sono a parar em cada estação.
.
A retirada terá de ser feita
de forma desordeira e irrecuperável,
dinamitando horizonte a horizonte.
E que a ilusão pague por fim
a sua dívida ao presente.